Cena Contemporânea traz o teatro de luta
Cultura

Cena Contemporânea traz o teatro de luta

Teatro é resistência, e a 22ª edição do Cena Contemporânea, que estreia nesta quinta-feira (1.7), em formato virtual, empunha alto essa bandeira. O projeto, totalmente gratuito, conta com recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec) na ordem de R$ 400 mil com geração de 120 empregos diretos e indiretos. Esse valor permitiu o evento realizar duas edições, esta e a anterior em dezembro.

“O Cena Contemporânea é um dos mais importantes festivais de artes cênicas do país. É um projeto que traz, em sua natureza, essas camadas de encontro artístico com a plateia, de ações formativas e intercâmbio com artistas de várias partes do mundo. Esse conjunto promove esse movimento de impacto na cultura e na economia da cultura”, destaca o secretário Bartolomeu Rodrigues

Até dia 10, 13 trabalhos produzidos em seis países – Brasil, Uruguai, Chile, Peru, França e Portugal – refletem sobre temas como identidade/alteridade, respeito, democracia, memória, preconceito, afeto e revolução em tempos duros para a cultura nacional.

“Esta e a edição passada do Cena, em dezembro de 2020, não seriam possíveis sem o apoio do FAC. Vejo com felicidade que o Fundo está vivo e potente”, defende o diretor geral e curador do festival, Guilherme Reis.

A organização do evento destaca, na abertura, os trabalhos do premiado dançarino, coreógrafo e designer francês Smaïl Kanouté. Em “Never 21”, ele aborda a morte de jovens negros em Nova York, Rio e Johanesburgo, ecoando a hashtag #Never21 do movimento Black Lives Matter.

Outras sugestões que mostram o teatro se reinventando a partir das telas são “Ana contra la muerte”, novo trabalho do premiado dramaturgo e encenador uruguaio Gabriel Calderón; “Hamlet”, produção peruana que apresenta uma livre adaptação da clássica tragédia de Shakespeare e elenco inteiramente formado por atores e atrizes com Síndrome de Down; e “Reconciliação”, coprodução Brasil-Portugal num ensaio sobre aceitação de limites e respeito às diferenças.

Memória e Identidade
Destaques na edição, dois diretores latino-americanos evocam memória e identidade, o chileno Mauro Malicho Vaca Valenzuela e a peruana Diana Daf Collazos. Malicho apresenta “Reminiscencia”, trabalho que será exibido em tempo real e para o qual faz uso de instrumentos virtuais como o Google Maps, que aos poucos vai situando o espectador no universo a ser abordado, o da vida de seus avós e do próprio Chile.

“Estou muito emocionado em participar do Cena Contemporânea, de levar ‘Reminiscencia’ para o Brasil. O teatro sempre esteve em crise, parte essencial dessa arte. A reinvenção do teatro na pandemia passa por aprender a abraçar o espaço fechado. A tela precisou se converter na luz de uma fogueira em torno da qual diferentes pessoas, de diferentes geografias, juntam-se para ouvir uma história. O que mantém o teatro vivo, hoje, é o relato. A tela poderia se tornar uma prisão ou uma janela. Transformou-se nos olhos de um outro. Nela, posso mostrar como vejo o mundo, como o penso, como sinto a humanidade, que perguntas me faço a cada dia”, teoriza Malicho.

O criador da Compañia Le Insolente Teatre em 2013, junto com Ébana Garin, destaca que “uma outra faceta do teatro na pandemia é que deixou de ser um gênero em que atores se apresentam diante do público sentado na audiência, para se transformar numa experiência de compartilhamento e transmissão de conhecimento e humanidade”.

Para ele, o teatro por novos meios se mantém como forma de comunhão de pessoas que refletem juntas e, dessa forma, têm a possibilidade de se vincularem umas às outras. “Gosto de pensar que o teatro se converteu numa colagem de memórias coletivas. Quando o artista compartilha seus processos criativos, abre uma nova porta para as artes vivas. O teatro é resistência, é memória. Num pequeno detalhe, num simples gesto, pode contar a história da humanidade”, acredita.

Em “Preludio – Ficciones del Silencio”, Diana Daf protagoniza uma obra que vai do palco de um teatro aos locais marcantes da vida deseus antepassados para investigar os silêncios que permanecem entre os povos da América Latina. Ela interroga: “Qual é minha própria voz? Por que há coisas que têm de ser ditas pela minha própria voz? Como isso me dá um lugar em minha história familiar e minha história social?”.

Diana conta que as histórias que começa a narrar têm a ver com histórias de dor, de morte, de classe, de imigração. São histórias que vão se cruzando e apontam para a figura de uma perda que tem de ser contada pela voz desse sujeito, que está ameaçado de se perder.

“Durante muito tempo minha geração e gerações anteriores tiveram de passar por processos de repressão não apenas no Peru, mas em toda a América Latina. Não se podia falar da violência generalizada nem tampouco da violência doméstica, um peso que caía muito mais sobre as mulheres. Nossas avós e mães cresceram totalmente silenciadas. E nós também, até que começamos a reclamar e a contar nossas próprias histórias. Antes, um grito que saía pelo corpo porque era calado na voz e que agora precisa ser dito”, acredita.

Diana explica que o trabalho se articula com os temas do Cena Contemporânea porque resgata uma memória que pode mudar o futuro, reconstrói identidades que buscam incluir os que ficaram de fora de uma historiografia oficial.

Inclusão e Futuro

Inclusão surge em “Hamlet”, da encenadora peruana Chela De Ferrari, num elenco completamente integrado por atores e atrizes com Síndrome de Down, fruto de um processo colaborativo, em que os artistas foram se apropriando dos personagens e dando-lhes suas próprias palavras.

O Cena ainda destaca a presença de um olhar para o futuro nos trabalhos “Reconciliação”, da portuguesa Patrícia Portela e do brasileiro Alexandre Dal Farra; “Estranhas”, direção de Jonathan Andrade para ideia das atrizes Renata Soares e Beta Rangel; na encenação brasiliense do clássico becktiano “À Espera de Godot”, dirigido por William Ferreira; em “Solos para um corpo em queda”, da atriz e performer Tatiana Bittar; e no novo trabalho do premiado encenador uruguaio Gabriel Calderón, “Ana contra la muerte”, explorando os limites de conceitos como ética e moral.

Para descontrair, o Cena apresenta “Exit”, trabalho do Cirque Inextremiste, da França, que encena a tentativa de fuga de loucos de um hospício usando um balão de ar quente. No mesmo tom, o festival oferece uma compilação dos esquetes criados pela atriz Ana Luiza Bellacosta para as redes sociais em “Uma palhaça confinada em Gaste e sua lombra em casa”. Para a criançada, o festival exibe “Inspira Fundo 2”, com as novas produções do Canal Bebelume, especialmente dedicado à primeira infância.

A diretora artística, Carmem Moretzsohn, ressalta que, “neste ano, quase todos os trabalhos que nós vamos exibir no Cena já foram concebidos para o ambiente digital. Demonstram uma diversidade incrível de linguagens, técnicas e abordagens. A história tem comprovado o talento que o teatro tem para, antropofagicamente, se apropriar e revolucionar as outras artes, as novas tecnologias. Estamos felizes em realizar mais uma edição virtual do festival, e não vemos a hora de voltar a ocupar os teatros, com seus cheiros, seus suores, suas almas, seus fantasmas, suas emoções”.

22º Cena Contemporanea

1º a 10 de julho

Programação, sinopse e como acessar:

https://2021.cenacontemporanea.com.br/

Como assistir:

A programação será exibida gratuitamente, com as estreias acontecendo no site e no canal Youtube.com/cenabsb, na data e horário que constam na programação. Cada obra poderá ser vista (ou revista) por mais três dias depois de sua estreia, em qualquer horário, nos mesmos locais – exceto “Ana contra la muerte”, que ficará disponível somente até o domingo, 11 de julho.
Dicas:

  • De preferência, utilize o computador ou uma Smart TV.
  • Use fone de ouvido ou aumente o som.
  • Reduza a iluminação.
  • Sinta-se confortável.
  • Se não estiver usando para assistir, por favor, desligue o celular. Afinal, você está no “teatro”.