Como resposta à polêmica sobre o uso da inteligência artificial para ilustrar uma das obras concorrentes ao Prêmio Jabuti, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) decidiu desclassificar a obra Frankenstein, uma edição do clássico de 1818, da categoria Melhor Ilustração. Por esses estranhos caminhos que a nossa mente percorre, esse fato me lembrou do desdém de artistas perante o surgimento da fotografia, na primeira metade do século XIX. Com o discurso da primazia de “reproduzir a realidade”, os pintores passaram a negar à fotografia o status de arte. O resultado, todos sabemos: a “novidade” não só conquistou a dignidade de peça artística, como registrou a História da humanidade desde então e influenciou a mudança da própria pintura, abrindo espaço para movimentos que libertaram os pintores da prisão do real e acadêmico convencional.
Em 2019, na Bienal de Veneza, pude ver um outro impacto e debate do avanço da tecnologia na arte. A despeito de todas as negações e disputas, o NFT (sigla non-fungible token, em livre tradução, token não fungível) tomou de assalto o evento, propondo uma nova forma de entender, fazer e comercializar a arte. Nos quatro cantos do evento, pude ver obras e mais obras de arte produzidas com esse recurso. Na edição de 2022, o Pavilhão de Arte Descentralizada produziu um NFT luxuoso, expôs mais de 200 obras de arte (com esse viés) e apresentou a moda virtual de luxo com recursos físicos e digitais, promovendo uma experiência artística que ressignifica a digitalização para as novas gerações, como classificou a curadoria do evento. Dois brasileiros, inclusive, apresentaram NFT Art na edição: Eduardo Kac e João Angelini.
O ponto que defendo é que a produção da arte – em rigor, disruptiva – não pode ser contida ou restrita a um tipo de instrumento. Da pena à tecnologia, a produção artística evolui, espelhando a ferramenta disponível para criar. Óbvio que temos que pensar na criação de mecanismos para proteção dos direitos autorais, mas não acredito que o caminho seja proibir ou ignorar um movimento tecnológico em prol da inovação de vários mercados, incluindo o editorial. Os limites éticos e jurídicos precisam estar à altura de um debate mais profundo e contemporâneo.
Citando, especificamente, o receio que o mercado editorial tem acerca do impacto da tecnologia, podemos citar a edição de 2023 da Frankfurt Book Fair. Nela, o tema dos corredores era o quanto a inteligência artificial vai tirar empregos de autores, tradutores, ilustradores… Na visão de especialistas, os postos de trabalho que serão possivelmente perdidos pelo ser humano estão em áreas nas quais a tecnologia não entra, ou seja, sempre que houver soluções tecnológicas será possível integrar a força de trabalho humana e tecnológica. Na prática, se a máquina for incorporada ao cotidiano dos profissionais, homens e máquinas podem trabalhar lado a lado, em uma perspectiva colaborativa.
Voltando ao caso da desclassificação, criar uma ilustração via inteligência artificial é algo tão sofisticado e artístico quanto desenhar com uma pena. Essa interação máquina e artista requer um talento fino, ditado majoritariamente pela mente humana. Temos que avançar e qualificar esse diálogo – não o proibir!
| Lu Magalhães é presidente da Primavera Editorial, sócia do PublishNews e do #coisadelivreiro. Graduada em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), possui mestrado em Administração (MBA) pela Universidade de São Paulo (USP) e especialização em Desenvolvimento Organizacional pela Wharton School (Universidade da Pennsylvania, Estados Unidos). A executiva atua no mercado editorial nacional e internacional há mais de 20 anos.
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