A velha ditadura querendo mostrar os dentes
Rio de janeiro

A velha ditadura querendo mostrar os dentes

A velha ditadura querendo mostrar os dentes

Ângela Rocha
Jornalista

Na madrugada do dia 26 de março de 1981, quinze homens armados e encapuzados invadiram e explodiram a sede do jornal Tribuna da Imprensa, na Rua do Lavradio, no centro do Rio.

A Tribuna foi um jornal que teve uma atuação importante, defendendo a liberdade de expressão e a democracia. Uma investigação, na época, confirmou o que todos sabiam: A bomba foi colocada por militares radicais, inconformados com o fim da ditadura.

Eu trabalhava lá como estagiária. Era meu aniversário. Fui uma das primeiras a chegar na manhã do dia 26.
Ainda havia cheiro de fumaça e esbarrávamos com bombeiros que faziam o rescaldo do local. Recebemos da direção a orientação e a motivação para trabalhar e colocar nas bancas uma edição histórica.

Durante todo o dia, trabalhamos de forma improvisada, em meio a escombros e poeira. Nossa tarefa era recolher depoimentos de autoridades, políticos, artistas – todas de repúdio ao ato de violência contra a liberdade de imprensa.

Foi um dia inesquecível! A mobilização de todos – funcionários administrativos, repórteres, amigos – e da sociedade como um todo, que foi solidária e receptiva ao nosso trabalho exaustivo de repercutir o fato para que fosse devidamente denunciado, apurado e cobrada a punição dos responsáveis.

O dia foi longo e só terminou na madrugada. A maioria já tinha ido embora, mas faltavam – como sempre – pequenos detalhes. Eu e o colega, Rodolfo Fernandes, filho do dono do jornal, Hélio Fernandes, nos oferecemos para ficar e ajudar no fechamento.

Eu era uma garota de 20 anos, ainda na faculdade e, de repente, me senti participando da História.

Mas a história que vou contar agora se refere a outra bomba. A que caiu no meu estômago naquela madrugada.

O Centro do Rio, nos idos de 80, de madrugada, era um local totalmente deserto e inóspito. Não havia um só restaurante ou bar aberto a muitas quadras de distância.

Já era madrugada quando fomos convidados a descer porque havia chegado comida.

Eu e o colega descemos para comer e demos de cara com uma famosa e muito conhecida, na época, carrocinha do Angu do Gomes. Para nós, uma novidade. Nunca havíamos experimentado aquele angu à baiana.

Encontramos os funcionários da gráfica, que trabalhavam nas máquinas rotativas do jornal, na portaria do prédio, juntos com a carroça do Angu. Por causa da explosão, tudo ainda cheirava a poeira e fumaça.

A fome era grande e, sem pensar muito, pegamos cada um o seu pratinho da iguaria nordestina.

Lembro do Rodolfo, no início, tentar buscar explicações sobre o que eram aquelas coisas todas misturadas no angu. Ouvimos respostas evasivas do tipo: Carne picadinha.
– Mas que carne? Ninguém respondia.

Lembro de ter escutado alguém dizer: “Eles querem bem quente…”.

Famintos, desistimos de saber e começamos a comer.

Comemos em pé, na porta e com o prato de alumínio na mão. E, já nas primeiras garfadas, senti boca, garganta, traqueia e esôfago queimarem. Comecei a sentir muito calor e suava. Todo o meu corpo parecia pegar fogo.

Comecei a notar umas risadinhas estranhas entre os funcionários que, a esta altura, de maneira quase cruel, já começavam a listar o que seriam as tais “carnes picadinhas”: miúdos do boi, partes do fígado, vísceras e tripas.

Meu estômago embrulhava só de ouvir. Sentia a visão já meio turva e o meu corpo perto de incendiar de tanta pimenta.

Olhei para o Rodolfo que já estava com a camisa ensopada e desabotoada e perguntei séria:

-O que foi isto que nós comemos? Eu acho que vou morrer.

Lembro, até hoje, da sua gargalhada. Caiu a nossa ficha e entendemos que havíamos sido vítimas de uma brincadeira: “envenenados” por uma comida para a qual nosso organismo não estava preparado. O resto foi suor,

lágrimas de pimenta e risadas.

O resgate deste texto me pareceu oportuno. Fala de amizades e brincadeiras entre colegas. Destaca o nome de grandes jornalistas que, generosos, figuram em uma mesma lista de equipe de trabalho com jovens repórteres e estagiários.

“A velha ditadura querendo mostrar os dentes” – foi uma das muitas frases que ouvi naquele dia. Ficou registrada na minha memória.

E o título desta edição histórica nos remete aos dias atuais. Deixa claro que ditaduras morrem, acabam. Mas as democracias sobrevivem às bombas e ao tempo.