Artigo de Ângela Rocha sobre Liberdade
Rio de janeiro

Artigo de Ângela Rocha sobre Liberdade

Artigo de Ângela Rocha (esposa do Lupi) sobre a Liberdade

Liberdade.
* Angela Rocha.
* Jornalista e escritora.

A Liberdade entrou na minha vida por volta dos meus 11 anos de idade. Meu irmão mais velho já estava na faculdade e foi de lá que ele provavelmente trouxe a ideia “revolucionária” de fazer uma espécie de mural de palavras bonitas na porta do seu guarda-roupa. Só que descobrimos, menos de uma semana depois, que Liberdade era uma palavra muito perigosa.

É o tipo de tarefa que irmãos mais velhos deixam a caçula participar. Espalhamos dezenas de revistas e jornais pelo chão, ele ia escolhendo as palavras e eu procurando e recortando. Estava adorando a missão. Procura Amor, fácil. Procura Felicidade, fácil. Procura esperança, fácil. Procura Paz, menos fácil. Até que ele falou:

– Procura Liberdade.

Descobrimos que no início dos anos 70 essa palavra era muito difícil de encontrar. Em jornais, impossível. Em revistas, nem em contextos diferentes. Até as propagandas evitavam a palavra. Talvez em alguma música do Chico Buarque…

O jeito que ele encontrou foi me mandar recortar as letras para depois montar. Criança adora coisas grandes e coloridas. A minha Liberdade ficou gigante.

A solução afetuosa e criativa que ele encontrou foi colocar a minha Liberdade no centro do mural e as demais palavras orbitando ao seu redor como pequenos satélites.

Depois que todas as palavras foram cortadas e coladas, a porta ficou pronta. Ele me olhou e perguntou:

– Você sabe o que é Liberdade?

– Acho que é fazer o que a gente quiser da vida da gente – respondi.

– É mais até do que isso – foi a sua resposta, com um meio sorriso e sem mais explicações..

Nós morávamos em um apartamento térreo na Tijuca. Aqueles prédios sem garagem, em que as janelas ficam na altura da cabeça de quem passa na rua. Fazíamos piada de que, se não houvesse um pequeno jardim na frente do edifício, as pessoas podiam passar na calçada e nos cumprimentar, só esticando a mão.

E foi exatamente esse o problema.

Dias depois, voltando para casa, meu pai percebeu que quem passava na rua conseguia ver o mural dentro do quarto. A minha Liberdade era muito grande e dava para ler lá de fora.

Ele conversou com a minha mãe e juntos decidiram que a minha Liberdade era perigosa. Poderia dar problemas, alguma denúncia à polícia do Exército. Na ditadura, muitas palavras bonitas juntas já eram algo suspeito, e, com a Liberdade grande no meio, mais suspeito ainda. Poderíamos ser denunciados como comunistas. Imagina!

Eu ouvia e não entendia nada. Mas sentia medo. Meu irmão tentou argumentar, mas não teve jeito, a Liberdade teria que ser arrancada. A mim coube a missão de pegar a ponta da tampa de uma caneta Bic e ir arrancando letra por letra. Até a liberdade sumir.

Quando meu irmão chegou e viu o espaço vazio no meio, falou:

– Arranca tudo. Perdeu o sentido.

E assim fui vendo cair no chão, uma a uma, as palavras bonitas recortadas e coladas com tanto capricho. Caíram a alegria, o amor, a felicidade, a esperança…

Como se a Liberdade estivesse ali no centro de tudo, segurando todas elas… fosse o grande elo entre todas as coisas bonitas da vida.

O texto trabalhado com um verniz quase infantil é como o sinto, mesmo depois de 50 anos.

Essa lembrança me emociona. Lembra o meu irmão que perdi. Lembra um tempo sombrio onde a Liberdade era perigosa e precisava ser escondida ou arrancada e me lembra um hoje assombrado por todos aqueles fantasmas. Um hoje que coloca em risco a maior de todas as conquistas: a Liberdade.