Quantas Angolas cabem no Brasil?
Geral Rio de janeiro

Quantas Angolas cabem no Brasil?

Por Angela Rocha – Escritora e jornalista.

 

Estive em Angola e amei. Amei ser surpreendida, sair da minha zona de conforto,  experimentar o desconforto do calor, dos mosquitos, dos engarrafamentos,  tomar um verdadeiro choque de realidade. E,  voltar, convicta de que existem várias Angolas aqui dentro do Brasil.

A guerra deixou marcas na paisagem e na alma daquele povo humilde, que vive sem saneamento básico, sem liberdade, empilhado dentro de vans velhas e sem segurança, na tentativa de se locomover num trânsito caótico. Que vive com muita cor nas roupas e na vida,  aquela alegria meio insana, que nós brasileiros conhecemos tão bem.

Mas não só a alegria nos une. Quem viveu, como eu, um pouco dos últimos anos da ditadura militar brasileira vai encontrar outras semelhanças. Vai entender o olhar de medo das pessoas nas ruas, quando você pede para tirar uma simples foto ou começa a fazer perguntas.

Estive lá ainda no período “Zedú”, como era conhecido o Presidente José Eduardo dos Santos, que esteve no poder por longos 38 anos. Uma ditadura que controlava desde o parlamento e o sistema judicial até as coisas mais prosaicas do dia a dia dos habitantes.

É impactante você chegar num país que não conhece e descobrir que aquelas informações que você colheu, em pesquisas na internet, não só são verdadeiras como podem ser bem piores, quando vistas ao vivo e a cores. Sim. É verdade.

Não existe táxi nem ônibus em Luanda, sua Capital. Restam umas vans muito velhas, que são utilizadas pelo povo como único meio de transporte. Dos pobres! Porque os ricos se locomovem em fantásticos carros importados.

Não existem sinais de trânsito nem regras pré-estabelecidas. Funciona a lei do mais forte, ou dos mais afoitos. Os acidentes são constantes e os engarrafamentos absurdos.

Os engarrafamentos são um capítulo à parte: foram tão incorporados ao dia a dia, que são utilizados para a venda de tudo. De tudo mesmo. Ao longo das principais vias, de dentro do carro, você pode comprar cadeiras, bolsas, panelas e até experimentar uma camisa social ou cinto. Um mundo surreal que você mesmo vendo quase não acredita.

Foi também de dentro do carro que avistei alguns homens, com as pernas mutiladas, conversando. Recebi, horrorizada, a explicação de que a maioria é vítima das terríveis minas terrestres enterradas e espalhadas por todo o território rural durante a guerra. É comum ler-se nos jornais locais notícia de camponeses sendo mortos ou mutilados, nestas circunstâncias, até hoje.

A moeda local – Kwanza – tem notas de alto valor de face, mas que não valem quase nada no bolso do angolano. Uma nota de 100 dólares americanos correspondia, na época, a mais de 40 mil kwanzas. Senti-me constrangida, na recepção do hotel, quando resolvi trocar 300 dólares e recebi uma maçaroca de dinheiro que nem cabia na minha carteira. Enfiei a metade em um envelope e joguei no fundo da mochila.

Tudo é muito distante da nossa realidade. Feio e bonito ao mesmo tempo. Um exemplo: as zungueiras (vendedoras ambulantes, que carregam, equilibradas na cabeça, enormes bacias) vendem de banana a chinelo, com seus bebês amarrados nas costas e suas roupas coloridas, inspiram fotos belíssimas.

As feiras e grandes mercados de rua também são pura poesia. A beleza e a pobreza convivem e se revelam em uma verdadeira fonte de riqueza de imagens para um bom fotógrafo ou cinegrafista. Mas as fotos são proibidas.

Os turistas não são bem-vindos. E o povo tem medo.

Mesmo com todo esse ambiente hostil, os chineses chegaram e se instalaram lá. Estão na construção civil, nas refinarias de petróleo e em diversas outras atividades. Prédios são erguidos em cada quarteirão; a cidade é um verdadeiro canteiro de obras.

É um mundo real se misturando, a todo instante, com um mundo surreal. A extrema riqueza da Talatona – bairro que abriga um hotel cinco estrelas e condomínios de luxo: tipo uma Barra da Tijuca – e o restante da cidade vivendo na extrema pobreza, onde água encanada é um luxo para apenas 30% da população. O mau cheiro, a sujeira e a poeira tomam conta do ar todo o tempo.

São muitas as histórias, para nós, engraçadas e estranhas.  Mas, na verdade, representam simplesmente culturas diferentes a serem respeitadas. Uma delas é quase inacreditável: um morto é reverenciado pela família durante 15 dias, em que todos faltam ao trabalho para uma série de infindáveis cerimônias.

As autoridades são reverenciadas e cultuadas. É comum ouvi-los tratar o presidente como “entidade”. Uma relação desigual no sentimento e na prática.

Conheço uma jovem brasileira que me explica que seu marido estava lá, incumbido de instalar um projeto em uma grande empresa. A estada deles na cidade duraria uns dois anos. Ela me contou – com naturalidade – que todo dia de manhã, quando acordava, fazia um risco na parede do seu quarto para marcar menos um dia em Luanda… (Tento disfarçar meu desconforto com a história).

De repente… uma jovem, carregando duas crianças amarradas ao corpo, me autoriza uma foto. Logo se junta um grupo à minha volta. Peço para me ensinarem a equilibrar a bacia na cabeça – as brincadeiras começam; o gelo é quebrado. Aí, sim: você descobre um povo alegre, gentil, sem muitas esperanças de mudanças, mas adaptado à sua realidade. “Se viram” para sobreviver.

As famosas “morenas de Angola”, cantadas por Chico Buarque e Clara Nunes são bonitas, sofridas e fortes.

Já com a viagem de volta marcada para o dia seguinte, lembro do monte de kwanzas esquecidos no fundo da minha mochila e da estranha proibição de não poder levar uma cédula sequer do dinheiro local de lembrança. Pego o envelope e entrego para aquela bela morena que se arriscou a tirar uma foto comigo… Ela arregala os olhos e pergunta:

– É para mim? Mas você não vai publicar a minha foto, vai?

Se você não quiser, não. Mas o dinheiro é seu sim.

Ela dobra o envelope e enfia dentro da roupa enquanto abre um belo sorriso e sai cantarolando feliz… Por uma fração de segundos, olho ao redor e me dou conta de que aquilo ali era um pouquinho de Brasil: locais insalubres, mulheres guerreiras e o conceito intangível de felicidade…